Anni, também não entendo porque as pessoas querem tantas respostas da literatura. Respostas pessoais e intranferíveis on demand para seus próprios interesses.😠
Por que abrir um livro e pensar: pra onde o autor vai me levar? E se deixar guiar por aquele universo criado por ele? Sinto, como você muito bem pontuou na sua cartinha, que as pessoas, além de quererem respostas bem explicadinhas sobre todos os temas abordados no livro, querem uma caixa de ressonância daquilo que sentem e pensam e isso é, pra dizer assim, por alto e bem superficialmente, uma pena. 🪶
Fico pensando que desde que o foco das narrativas passou a ser o indivíduo-escritor (autoficcção é só um sintoma disso), parece que o indivíduo-leitor também quer estar ali presente nas linhas do que lê. Mas, deixa eu dar um spoiler: nem em autobiografias o autor deixa de ficcionalizar sua vida, imagina na autoficção!!! Mas é que além da curiosidade sobre a vida alheia - do autor - ainda queremos que sejam expostas as verdades e afirmações sobre as nossas vidas. Que desejo pequeno, né? Sei que, como Orwell escreve, é fantástico ver nossas crenças descritas em um livro. Ou tomar lições e aprender um pouco sobre a realidade, mas, outro spoiler, a literatura não se resume a isso.
Porque a literatura não deve ser didática. Por isso, concordando com você, não faz sentido nenhum cobrar aprofundamento de um tema em uma obra. Estava ouvindo um comentário ótimo sobre Sally Rooney ter abordado menos a questão de classe em Intermezzo, seu quarto romance. E o engraçado é que, tem gente que reclama que ela aborda demais esse tema em Conversas entre amigos, seu primeiro romance. E aí? O que esse povo quer? Saber mais sobre diferenças de classe, mais exposição do pensamento marxista da autora, discutir os efeitos do capitalismo tardio nos relacionamentos interpessoais? Acho que a ideia da ficção não é fazer o leitor aprender nada. Aliás, nem sou eu quem acha isso. Vladimir Nabokov escreve:
Outra questão: podemos esperar obter informações sobre lugares e momentos históricos em um romance? Será que alguém é tão ingênuo a ponto de pensar que pode aprender alguma coisa sobre o passado nos corpulentos campeões de vendas comercializados pelos clubes de livros sob o disfarce de romances históricos? Mas e as obras-primas? Podemos confiar no retrato que Jane Austen faz da propriedade rural na Inglaterra com baronetes e paisagens planejadas quando tudo que ela conhecia era a sala de visita de um clérigo?
E A casa soturna, esse romance fantástico em uma Londres fantástica: seria possível dizer que se trata de um estudo da cidade cem anos atrás? Certamente não.
[…]
A verdade é que grandes romances são grandes contos de fadas, e os romances destas lições são supremos contos de fadas.
Parece que isso explode a caixinha da compreensão literária. Não quero dar lição de como ser um bom leitor, deixo apenas a indicação do texto de Nabokov, que está em Lições de Literatura, tradução Jorio Dauster, publicado pela Editora Fósforo.
Então, fica a sugestão de colocarmos um grande era uma vez 🪄diante de toda frase inicial de um livro. Explica Terry Eagleton, em Como ler literatura, tradução de Denise Bottman, publicado pela L&PM Editores:
O gesto verbal "Era uma vez" afasta a fábula do presente e leva a algum vago reino mitológico tão distante que nem parece mais fazer parte da história humana. Evita deliberadamente situar a história num tempo ou lugar específico, assim lhe conferindo uma aura atemporal e universal. Talvez nos sentíssemos menos arrebatados por "Chapeuzinho Vermelho" se a história nos informasse que Chapeuzinho Vermelho era formada em Berkeley ou que o Lobo havia passado algum tempo numa prisão de Bangcoc. "Era uma vez" avisa ao leitor que não faça certas perguntas, como "É verdade?", "Onde aconteceu?""Foi antes ou depois de inventarem os sucrilhos?".
❤️A mais recôndita memórias dos homens, de Mohamed Mbougar Sarr, traduzido por Diogo Cardoso, publicado pela Editora Fósforo, faz perguntas sobre tudo isso e muito mais. Inclusive sobre outra questão que perturba muito os leitores, a questão da importância de um livro. Dizem que um livro precisa ser “relevante” pra ser lido atualmente: tem que abordar racismo, misoginia, exploração de populações marginalizadas, diferenças de classes, aquecimento global, fim da aventura humana na Terra… - a aí volamos pro “aprendizado” via literatura. Precisa, é? Então… Volta pra Nabokov:
“A arte da escrita é algo muito inútil se não implicar, antes de tudo, a arte de ver o mundo como uma ficção em potencial. O material desse mundo pode ser bem real (tanto quanto a realidade o permite), porém não existe como um todo bem conhecido: ele é o caos, que o autor ordena que entre em ação, permitindo que o mundo se acenda, bruxuleante, e entre em ignição.”
A gente lê pra admirar a obra de arte e pra sermos incomodadas pela obra de arte. Provocadas a refletir por meio daquele material realizado pela mão de quem o escreveu. E quanto mais lemos, mais percebemos que a provocação é constante, inerente e inexpecífica. Um bom texto vai abordar todas essas “questões” sem, necessariamnte, ser um livro que trata de uma “questão”. E um texto vai complementando outro, que vai complementando outro e tudo vai explodindo nas nossas cabeças e criando elos inexplicáveis entre Nárnia e o Deserto dos Tártaros.
Daí, Tati, que eu penso que é a preguiça de refletir que faz muita gente cair na esparrela de procurar explicações pro que lê, quando, na verdade, deveriam pensar é em buscar mais perguntas. Na verdade, também nem é, né? Veja que estou me contradizendo, ou contradizendo Nabokov, sei lá, me perdi…
Mas, volta… 💭
Kundera1 nos passa na cara que a vida não tem rascunho, não é uma peça ensaiada, a gente apenas vai pro palco esperando não quebrar a perna. Se somos vítimas ou heróis das nossas atuações ações, não temos como saber, porque não vemos o resultado, o fim da “peça”, ela está sendo vivida. Daí que entra a ficção que, sendo a forma mais próxima da vida, é o espaço que permite que vejamos a totalidade bem organizada, voltamos a Nabokov, da realidade. E essa organização ficção que começa com um era uma vez… termina com o sair dos personagens de cena, num grande palco, tal qual Shakespeare nos passa na cara num trecho de A tempestade, na tradução de José Francisco Botelho, edição da Penguin Companhia:
[Meu caro leitor] Meu filho, não te assustes; vejo que estás pasmo,
Cheio de espanto e angústia. Anima-te, fidalgo.
Nossa festa acabou. E os atores que vimos,
Conforme eu disse, eram espíritos, e todos
Se dissiparam pelo ar, no ar rarefeito.
E, como essa visão de arquitetura diáfana,
As altas torres coroadas pelas nuvens,
Os palácios gloriosos, os templos solenes,
O próprio globo imenso, e todos que o herdarem,
Sim, tudo, tudo um dia vai se dissolver
Sem deixar para trás nem um rastro de névoa.
Nós somos da matéria de que é feito o sonho,
E nossa diminuta vida é circundada
Por um adormecer.
🌩️🌩️
Os era uma vez ou SEs são o grande ponto da literatura. Por isso que sempre temos uma possibilidade de vida na literatura. Aí, a gente volta pra David, ele mesmo, nosso amado Copperfield. Já escrevi sobre isso. Sobre David ser Dickens. Sobre Seinfeld ser Seinfeld. São? São mesmo ou são o “e se” deles, seus espelhos e seus retornos reescritos? A gente retorna pensando sempre no destino. Faríamos o que teríamos que fazer ou o destino só é visto depois que o acaso se expressou nas nossas caras?
O rascunho pode ser jogado fora, reiniciado, a vida ou o ato da Criação, infelizmente, não.. Se o livro não atende ao que queremos, se é que precisamos querer alguma coisa, podemos colocar no congelador. Ou começar outro livro.
Mohamed Mbougar Sarr escreve que o acaso é só um destino que se ignora. Porque, tal qual Kundera expõe sobre a insustentável leveza dos nossos seres, se já soubéssemos do destino final, como então viveríamos com o peso de nossas escolhas? É não sabendo que há a permissão para a leveza. Tá. Mas ela é insustentável, porque retornamos e retornamos e retornamos. Daí que, vermos os atores saindo de cena, ou os personagens tendo um fim no romance2, nos lembra que também temos um fim de cena em vista, sem rascunho, sem retorno.
Não pretendo ler Nietzsche. Só se você me obrigar, mas sei que você não vai me obrigar a nada😁. Fico pensando que minha cabeça iria explodir. Se eu já fico voltando e voltando pro que disse, fiz e pensei, imagina se entro em contato com a teoria disso tudo?
Acho que prefiro ficar na ficção. A literatura vai me provocar mais perguntas e vou me contentar em seguir sem respostas.
“Minha vida, como qualquer vida, parecia uma série de equações. Uma vez revelado seu grau, seus termos inscritos, estabelecidas suas incógnitas e verificada sua complexidade, o que sobrava? A literatura; não sobrava e nunca sobraria nada mais do que a literatura; a indecente literatura, como resposta, como problema, como fé, como ver-gonha, como orgulho, como vida”. - A mais recôndita memória dos homens, de Mohamed Mbougar Sarr, na tradução de Diogo Cardoso, Fósforo.
💭💭💭
ele, o Milan:
Ideia extraída, também, de Terry Eagleton em Como ler litertura, já citado acima. E é ele que faz a relação com A Tempestade, de Will.
Eu tenho tanto pra lhe falar… mas escreverei uma resposta adequada. Aqui trago uma pergunta pra você e para Anni, devo ler A Recôndita antes de Bolaño? Se sim, Alguma indicação por onde começar?! Sei que muitas vezes essas perguntas irritam, mas confio plenamente 🤗 nas minhas amigas leitoras 👀 😁
É isso. E pensando nisso tudo, talvez seja por isso que os personagens de Bolaño, outro que ficcionaliza sua própria vida, nunca acha quem procura, e quando acha, não é o que ele esperava, ou escapa de suas mãos.
Tô amando ler A Recôndita, acho que vai dar muito mais material pra pensar nesse assunto.