Pra quem não sabe, meus projetos de leituras, às vezes, são decorrência direta de alguma viagem que eu quero fazer. Desde que li Ulysses, em 2020, eu fiquei com vontade de voltar a Dublin, cidade que eu tinha visitado em 2019, mas sem ter em mente, ainda, o mapa feito por James Joyce em seu romance mais popular. Porque Ulysses é, também, um mapa de uma cidade. Não é por nada que algumas edições do romance trazem em suas capas mapas ou ilustrações da capital da Irlanda.
Sendo Ulysses O livro perfeito para uma releitura, dado os vários labirintos interpretativos que ele nos apresenta, atrelar uma viagem a uma nova leitura veio como a justificativa perfeita: um retorno ao livro como motivo para um retorno a uma das personagens principais do livro, a cidade.
Assim, em 2 de fevereiro deste ano eu iniciei a jornada de retorno ao livro1 para que, no dia 16 de junho eu estivesse lá, na capital irlandesa.
16 de junho de 1904 é a data em que ocorre a ação do romance de James Joyce. E tudo acontece em Dublin. Vejam, um livro de mais de 1000 páginas que conta uma aventura que acontece em menos de 24 horas de um dia comum – para um não-leitor Joyciano – mas que é a data que marca o encontro do autor com sua futura esposa e define seu desejo de ir embora da Irlanda.
Mas ele pode até ter ido embora da Irlanda, mas a Irlanda nunca foi embora dele. Mesmo só tendo voltado a Dublin duas vezes durante o resto de sua vida, ele a descreve minunciosamente em Ulysses: o romance que é uma grande crônica da cidade. E eu precisava ir lá ver tudo isso.
O mais interessante é que o autor, mesmo tendo partido da cidade tão cedo, aos 22 anos, é um dos mais importantes escritores irlandeses, senão, o mais importante escritor irlandês, pois é quem melhor descreveu os cidadãos da sua capital, no magnífico Dublinenses, estendendo essa crônica, aos inúmeros personagens secundários de Ulysses. E, não é por nada, que a capital mundial da literatura, celebra seu grande autor no dia em que acontecem as ações de Leopold Bloom e Stephen Dedalus (os outros protagonistas de Ulysses): 16 de junho.
E lá estava eu.
Fui ao Museu da Literatura (o MoLI) no dia 15 e já fui me impregnando do espírito dessa data. E se eu já sabia da importância de Joyce pra literatura, eu pude ver expressamente. O museu fica na Universidade da Cidade de Dublin, onde Joyce estudou e homenageia os escritores irlandeses. Engraçado haver tantos autores de língua inglesa espalhados pelos inúmeros países que falam a língua, mas parece que Dublin se permite celebrar isso de forma mais intensa. Foi isso que eu senti lá.
E Ulysses tem destaque no museu. Claro, é o livro da cidade.
E, no dia 16, parti para me aventurar pela cidade tal qual fizeram Leopold e Stephen. Comecei lá, com Stephen, na torre Martello, na beira mar dublinense. Fazia um dia lindo de sol, ainda que tipicamente irlandês: frio. Fui recepcionada com uma pequena encenação do monólogo de Molly Bloom (a outra protagonista do livro, esposa de Leopold). E, o mais legal de tudo: um monte de gente vidrada, assistindo. Entusiasmados, trajados à moda da época do livro, estavam não apenas os atores, mas seus leitores entusiastas. E eu fiquei pensando: quando no mundo eu poderia ver uma homenagem tão maravilhosa a um livro, à literatura, essa coisa que nos faz pensar a realidade pelos olhos de seus criadores, pelos olhos que nós leitores lemos, nossas imaginações, nossas interpretações. E não eram poucos, um coletivo de seres humanos vivendo aquele imaginário criado em suas existências, compartilhando as ideias, o sonho de um escritor que já se foi há tanto tempo, mas que deixou seus personagens ali, vivinhos, vestidos por outras pessoas.
Aí eu entrei no cenário real onde se realiza a primeira cena do romance, onde somos apresentados a Stephen, o jovem amargurado, enlutado, desistindo de sua cidade e da pobreza de sua família e, acima de tudo, sonhador. Fui lá no alto, onde ele conversa com seu amigo Buck Mullingan e pensa, pensa muito, que não quer mais ficar por ali. Estava lá, olhando a vista da praia de Sandycove – que nem é lá bonita – e uma das organizadoras do evento me oferece sua cópia de Ulysses para que eu lesse lá, pra quem estava lá, como eu, admirando e homenageando um livro.
Engoli bravamente a vergonha do meu inglês capenga e li:
Depois de visitar a torre, fui a um dos pubs próximos da Torre e lá estavam mais pessoas homenageando aquele imaginário.
E, mais tarde, não pude deixar de visitar a Farmácia Sweny, local também real e em funcionamento até hoje, onde Leopold Bloom decide comprar um sabonete de limão e encomendar uma loção para Molly. A farmácia funciona também como um museu e uma homenagem ao livro. Lá são vendidas edições diversas do romance e souvenirs, como o sabonete de limão devidamente marcado com o nome da loja.
Por fim, à noite, foi a hora de ir até o Davy Barnes. Estava lotado, não consegui sentar e tomar um copo de sidra pra homenagear o seu visitante mais ilustre, claro, Leopold Bloom: o personagem que deu nome a esse dia, o Bloomsday: a grande aventura que é o dia em uma vida de um homem comum. O dia imaginário que carrega tanta realidade, que faz tanta gente pensar em suas realidades, pensar que a vida é muitos dias, um pode ser bom, outro pode ser ruim, mas desse somatório, somos feitos, existimos, diferentemente de Bloom, que foi apenas inventado, imaginado, mas da forma mais humana, o personagem mais humano, que fica triste e fica feliz, mas peida, caga, toma banho, é ridicularizado, é enganado, se deixa iludir, porque isso também faz parte de estar vivo. E é essa a grande celebração que James Joyce propõe em sua obra, em sua cidade, em uma data específica, tornando o livro, real.
Releitura não finalizada ainda, como já comentei por aqui algumas vezes.
Aiiii eu amei ♥️ Deve ter sido uma experiência incrível, né? O pessoal com as roupas da época 🥹🤏🏻
Me deu até vontade de ler Ulysses…
Ai Marisinha! Fiquei arrepiada lendo! Que delícia! Ainda hoje comprei um sabonete de limão e me lembrei do Bloom, claro! Sempre irei lembrar. E só pude pensar, que bom que li Ulysses, que bom que você nos trouxe essa vontade e nos ajudou, que bom.